Leituras comentadas: lesbianidade, epistemologia, perspectiva e teoria feministas

As análises podem ser lidas abaixo e no instagram: @laboratoriodeteoria

Confira:

Introdução

  1. O termo “orientação sexual fica fora da Constituição de 88
  2. Filipa de Sousa, açoitada em 1592 no Brasil por se relacionar sexualmente com mulheres
  3. Sodomia, mollicie, pecado contra natura, pecado nefando
Introdução

Leituras comentadas: lesbianidade, epistemologia, perspectiva e teoria feministas é uma série de análises curtas de textos que abordam a homossexualidade feminina. Cada análise tem como ponto de partida um trecho selecionado de um texto que dá início ao debate, costurado com outros textos a partir de dados, contextualização e argumentos. Os textos são de vários tipos: artigos científicos, artigos jornalísticos, leis, trabalhos acadêmicos, ensaios, textos opinativos e outros tipos. A série tem o objetivo de fortalecer a investigação em torno da lesbianidade em torno de três elementos do conhecimento: a epistemologia, a perspectiva e a teoria. Dessa forma pretende enriquecer e complexificar as pesquisas sobre temática e autoria lésbicas e contribuir para a construção e reconhecimento da teoria lésbica nacional, tendo como um de seus fundamentos, os pensamentos feministas. A série será publicada durante agosto de 2025, no Mês da Visibilidade Lésbica no Brasil, colaborando assim para as atividades realizadas durante este mês por movimentos sociais, ativistas, artistas, pesquisadoras e diversas instituições.

Em breve teremos a venda dos cartões-postais “Pensadoras” com o objetivo de financiar as atividades de pesquisa do projeto educacional Laboratório de Teoria. Acompanhe!

Análises: Daniela Alvares Beskow

1. O termo “orientação sexual” fica fora da Constituição de 88

A Constituição Federal de 1988 ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”, por ser resultado de intensa participação da sociedade civil – indivíduos e movimentos sociais – e incluir em seu texto diversos temas relativos à cidadania.

A Assembleia Constituinte de 1987-88 – órgão temporário formado para redigir a nova constituição – reuniu 559 parlamentares eleitos pelo voto direto que debateram durante 20 meses o conteúdo do texto. Foram enviadas 72.719 sugestões da sociedade civil à Constituinte e nela foram debatidas 12 mil ideias dos parlamentares.

João Antônio Mascarenhas, um homem gay do Grupo Triângulo Rosa, discursou para a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias e para a Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, nos dias 29 e 30 de abril de 1987, no Congresso Nacional, apresentando proposta de alteração do artigo 153 da Emenda Constitucional n.1 de 1969.

O artigo “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça” seria alterado com o objetivo de incluir o termo “orientação sexual”, expressando a ideia de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de orientação sexual.

Mascarenhas argumentou que a discriminação em relação à orientação sexual e ao sexo teriam a mesma origem: o machismo. A deputada Benedita da Silva (PT/RJ) foi uma das apoiadoras da proposta e em seus discursos, ressaltou a importância da eliminação do machismo e do racismo.

Após divergências entre os deputados e deputadas a proposta não foi aprovada. O termo “orientação sexual” não foi incluído e segue ausente do atual texto da Constituição Federal.

Como podemos pensar a relação entre sociedade, discursos dominantes e textos jurídicos na história do Brasil? E as ideias sobre sexualidade e mulheres? Como analisar a ausência dos termos “orientação sexual” em discursos oficiais ou a presença destes junto à termos pejorativos?

Ponto de partida para a análise: TELES, Maria Amélia de Almeida. Feminismo: ações e histórias de mulheres. São Paulo: Alameda, 2022

Daniela Alvares Beskow

05 de agosto de 2025

Referências bibliográficas

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; SANTOS, Daniel Moraes dos. O longo caminho contra a discriminação por orientação sexual no Brasil no constitucionalismo pós-88: igualdade e liberdade religiosa. Mandrágora, v.18. n. 18, 2012, p. 5-25. Disponível em: https://revistas.metodista.br/index.php/mandragora/article/view/1263 Acesso em 05 Ago. 2025.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 05 Ago. 2025.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 1969. Legislação Informatizada – EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 1969 – Publicação Original. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-1-17-outubro-1969-364989-publicacaooriginal-1-pl.html Acesso em 05 Ago. 2025.

COACCI, Thiago. Uma longa batalha. Livro resgata a participação do movimento LGBTQIA+ brasileiro para incluir direitos na Constituição. Quatro Cinco Um, 26 set. 2023. Livros e Livres, Ed. 74. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/resenhas/livros-e-livres/uma-longa-batalha/ Acesso em 05 Ago. 2025.

CONSTITUIÇÃO CiDADÃ completa 35 anos; Conheça um pouco dessa história. TV Senado, 08 Out. 2023. Notícias. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/tv/programas/noticias-1/2023/10/constituicao-cidada-completa-35-anos-conheca-um-pouco-dessa-historia Acesso em 05 Ago. 2025.

GAMA, Maria Clara Brito da. O movimento homossexual brasileiro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/88). 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, 2021, Belém – PA. Anais eletrônicos. Disponível em: https://www.sbs2021.sbsociologia.com.br/site/ Acesso em 05 Ago. 2025.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Feminismo: ações e histórias de mulheres. São Paulo: Alameda, 2022

VALERY, Gabriel. História e direito. A Constituição Cidadã completa 36 anos. TVT News, 07 Out. 2024. Disponível em: https://tvtnews.com.br/historia-e-direito-a-constituicao-cidada-completa-36-anos/ Acesso em 05 Ago. 2025.

2. Felipa de Sousa, açoitada no Brasil em 1592 por se relacionar sexualmente com mulheres

O processo de Filipa de Sousa, realizado em 1591 e 1592 no Brasil pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa pode ser acessado no site do Arquivo Nacional Torre do Tombo, arquivo vinculado ao Ministério da Cultura de Portugal.

O trecho acima faz parte deste processo, implementado por Heitor Furtado de Mendonça – visitador da Inquisição que compareceu ao Brasil –, que transcreve com suas próprias palavras a fala de Paula Sequeira durante sua confissão.

Paula fora depor ao inquisidor sobre o que era considerado pecado à época para a igreja católica e que, assim como outros depoentes que confessavam antes de serem denunciados, teria sua pena abrandada. Algo parecido com a delação premiada atual no Brasil.

O inquisidor descreve com as palavras do período a relação sexual entre as duas mulheres e enfatiza alguns momentos. Ao unir suas genitálias (vasos naturais), elas teriam tido prazer (deleitação) e consumado o cumprimento natural (chegado ao orgasmo), “como se fossem” homem e mulher.

Há destaque para o prazer, considerado um agravante na pena de sodomia, que neste caso, é a prática sexual entre duas pessoas do mesmo sexo. O inquisidor entende que o sexo deveria apenas ser praticado entre homem e mulher e que duas mulheres, ao realizarem-no, estariam mimetizando a prática heterossexual.

Filipa de Sousa foi punida com açoites e expulsa de Salvador. Até o momento não se sabe o que aconteceu depois.

A distância entre o presente e o séc. 16 gera notável dificuldade para a pesquisa sobre os fatos do passado, assim como seus significados para a sociedade de então. Como interpretar acontecimentos específicos de um período tão distante? Como driblar a escassez de registros sobre determinados temas e preencher lacunas de fatos ocorridos, mas, não documentados? Como analisar discursos sobre grupos subordinados vindos de agentes dominantes?

Quais termos podemos encontrar na história para se referir à lesbianidade ou bissexualidade de mulheres? É possível estabelecer pontes de interpretação entre o presente e o séc. 16 no Brasil?

Daniela Alvares Beskow

07 de agosto de 2025

Referências bibliográficas

ASSIS, Angelo Adriano Faria de. A inquisição e suas fontes no acervo do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira, Santo Ofício da Inquisição, 04 Jul. 2023. Disponível em: https://historialuso.an.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6628&Itemid=516 Acesso em: 07 Ago. 2025.

BRAGA, Isabel Drummont. Leitura e Sociabilidade no Feminino: Paula de Sequeira no Brasil Quinhentista. História (São Paulo) v.36, e22, 2017, p 1-16. Disponível em: https://www.scielo.br/j/his/a/wZ5CYdrmRsptz687JtwNvrJ/ Acesso em: 07 Ago. 2025

FONTOURA, Antonio (org.). O processo de Filipa de Sousa: inquisição e homossexualidade feminina no Brasil no séc. XVI. Edição do autor: Curitiba, 2020.

FRANÇA, Isabela Chiapetta de. Mulheres nefandas no Brasil colonial: a sodomia imperfeita na Bahia no Séc. XVI. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em História), Universidade Federal de Pernambuco, 2024. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/58826/4/TCC%20Isabela%20Chiapetta%20de%20Franc%CC%A7a%20.pdf Acesso em 07 Ago. 2025.

JESUS, Iara Silva de. Mulheres sodomitas nas visitações do Santo Ofício na Bahia. Dissertação (Mestrado em História), Universidade do Estado da Bahia, Santo Antônio de Jesus, 2022. Disponível em: https://ppghis.uneb.br/wp-content/uploads/2024/09/Iara-Silva-de-Jesus.pdf Acesso em 07 Ago. 2025.

LEÃO, Indira. Transgressões sexuais femininas segundo os processos inquisitoriais de sodomia (1531-1639). Biblos. Número, 3.ª Série. p. 203-224, 2021. Disponível em: file:///home/dani/Downloads/8897-Texto%20do%20Artigo-41839-1-10-20210712.pdf Acesso em 07 Ago. 2025.

LIZ, Isa Maria Moreira. As mulheres nas visitações do Santo Ofício ao Brasil (1591-1769). Dissertação (mestrado em História), Universidade de Lisboa, Lisboa, 2022. Disponível em: https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10451/56253/1/ulflimmliz_tm.pdf Acesso em 07 Ago. 2025.

PROCESSO de Filipa de Sousa. Brasil, 1591-1592. Arquivo Nacional Torre do Tombo, República Portuguesa. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/03d260afe67d4aae9a41b3eeec53ee1f Acesso em 07 Ago. 2025.

SILVA, Ronaldo Manoel. A última sodomia imperfeita: uma história das mulheres nefandas na América Portuguesa à luz do processo inquisitorial de Feliciana de Lira Barros (1763-1764). Revista Ágora, n. 25, Vitória-ES, p.78-97, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/18582 Acesso em 07 Aho. 2025.

SOBREIRA, Ana Maria Cavalca. Pecado nefando: representações da homossexualidade feminina no processo inquisitorial de Filipa de Sousa (1591-1592). 2023. 28 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História) — Universidade de Brasília, Brasília, 2023. Disponível em: https://bdm.unb.br/handle/10483/39896 Acesso em 07 Ago. 2025.

3. Sodomia, mollicie, pecado contra natura, pecado nefando

Sodomia, mollicie, pecado contra natura e pecado nefando são alguns dos termos utilizados para se referir à atividade sexual entre mulheres, encontrados em documentos jurídicos que regularam parte da vida em sociedade no Brasil entre os séculos 16 e 19. Alguns deles também eram empregados para se referir à relações sexuais entre homens ou mesmo à alguns tipos de relações entre homens e mulheres.

As Ordenações Afonsinas, Ordenações Manuelinas e Ordenações Filipinas são conjuntos de leis elaborados em Portugal e que foram utilizados no Brasil como parte do ordenamento jurídico da colônia. São documentos extensos em que há forte presença de ideias católicas vigentes na época e que definem penas a serem aplicadas para diversos tipos de práticas consideradas criminosas.

A vinda da Inquisição – conhecida como Tribunal do Santo Ofício – ao Brasil, percorreu as regiões da Bahia, Itamaracá, Pernambuco e Paraíba entre 1591 e 1595. Foi na Bahia que ocorreu a penalização de Filipa de Sousa, punida pelo pecado de sodomia. Nos documentos do processo referente à esse caso, é possível encontrar alguns dos termos utilizados para se referir às práticas sexuais entre mulheres.

As bibliotecas digitais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal contém a digitalização das Ordenações Manuelinas, Afonsinas e Filipinas, na seção de livros raros. São importantes documentos históricos para entender a história do Brasil e consequentemente, das mulheres e mulheres lésbicas durante o período colonial.

Os fatos descritos conduzem à várias reflexões: como terá sido o choque de leis e regras entre portugueses e os povos indígenas no Brasil de 1.500? Como pensar o cotidiano de uma sociedade regida por leis religiosas? Quais ferramentas teóricas podemos utilizar para analisar a lesbianidade em um momento histórico em que tal prática era proibida e logo, menções públicas defendendo-a prática, interditadas? Quais documentos analisar a fim de entender como era o cotidiano de fato de mulheres lésbicas e bissexuais no Brasil colônia?

Daniela Alvares Beskow,

14 de agosto de 2025

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Candido Mendes de. Ordenações e leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro: 1870. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733 Acesso em 14 Agos. 2025.

CEZARIO, Leandro Fazzolo. A estrutura judicial no Brasil colonial: criação, ordenação e implementação. RIDB, Ano 1 (2012), nº 9. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2012/09/2012_09_5249_5259.pdf Acesso em 14 Ago. 2025

GOMES, Jaqueline Souza Brito; LEITE, Márcia da Silva Barreiros. Os “hereges” no Brasil Colonial: a atuação dos tribunais da Santa Inquisição na Bahia, 1591-1593. Universidade Católica de Salvador, 2017. Disponível em: https://ri.ucsal.br/items/310d4627-d59a-433c-9ed1-3fdf5920ac06 Acesso em 14 Ago. 2025

PORTUGAL. Ordenações Afonsinas. Coimbra: Na Real Imprensa da Universidade, 1792. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/20280 Acesso em 14 Ago. 2025

PORTUGAL. Ordenações Manuelinas. Coimbra: Na Real Imprensa da Universidade, 1797. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/17841 Acesso em 14 Ago. 2025

PREZIA, Benedito. História da resistência indígena: 500 anos de luta. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

PROCESSO de Filipa de Sousa. Brasil, 1591-1592. Arquivo Nacional Torre do Tombo, República Portuguesa. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/03d260afe67d4aae9a41b3eeec53ee1f Acesso em 07 Ago. 2025.

VILELA, Hugo Otávio Tavares. Ordenações Filipinas e Código Criminal do Império do Brasil (1830) – Revisitando e reescrevendo a história. RJLB, Ano 3 (2017), nº 4. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2017/4/2017_04_0767_0780.pdf Acesso em 14 Ago. 2025.